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quarta-feira, maio 07, 2014

Nada Irracional pode ser Objeto da Virtude Cristã - Cachorros.


Nada Irracional pode ser Objeto da Virtude Cristã - Cachorros:  Para a teologia católica, fundada como ela é na escolástica, os animais não têm estatura moral. Se temos alguns deveres em relação a eles, são deveres indiretos, devido a certos interesses humanos envolvidos. Animais não são racionais como os seres humanos, e, portanto, não podem ter almas imortais. Mesmo a escolástica mais fervorosa admite hoje, provavelmente, que os animais sentem alguma dor, mas, se a sentem, sua dor não é vista como moralmente relevante ou verdadeiramente análoga à dor humana. Consequentemente, animais não têm direitos. “Zoófilos freqüentemente perdem de vista a finalidade para a qual os animais, criaturas irracionais, foram criados por Deus, isto é, para servir e serem usados pelo homem”, afirma o Dicionário de Teologia Moral. “De fato, a doutrina moral católica ensina que os animais não têm direitos, da parte do homem.”

É nesse contexto que devemos compreender a presente discussão, ao mesmo tempo filosófica e teológica, sobre direitos animais. É a persistência do catolicismo escolástico que inevitavelmente faz dos direitos a questão que ela é. Quando se considera a riqueza do aprendizado e das prescrições em relação aos animais no âmbito da tradição cristã, é certamente desconcertante que essas influências negativas continuem a ser sustentadas e continuem a manter-se em destaque. A questão dos direitos animais não é uma concessão ao pensamento secular no âmbito dos círculos teológicos, mas simplesmente o último estágio de um debate que iniciou há uma centena de anos. John Foster, escrevendo em 1856 (contra a oposição de William Wyndham ao estabelecimento da primeira legislação do bem-estar animal), queixa-se de termos sido ensinados, “desde nossa mais tenra infância, que as sensações prazerosas e dolorosas dos animais não são dignas de atenção; que não tem a menor importância estarem sofrendo, desde que não se tornem menos prestativos por causa de seu sofrimento… que, em resumo, eles não têm direitos enquanto seres sencientes que existem para seu próprio bem, tanto quanto para o nosso.” Se hoje as pessoas preferem o termo “direitos animais” em vez de “amor pelos animais” ou “bem-estar animal”, elas estão, consciente ou inconscientemente, vinculando-se a um debate histórico que de modo algum está encerrado. Não é irrelevante o fato de que a “Sociedade Católica do Bem-estar Animal” nos Estados Unidos tornou-se agora a “Sociedade Internacional pelos Direitos Animais.”…

O argumento de que os cristãos devem continuar a empregar a linguagem dos direitos e estender seu uso aos animais precisa ser submetido a três críticas. A primeira é que os cristãos não devem exigir que a teoria dos direitos seja a única teoria da obrigação moral. À objeção de que a teoria dos direitos pode ser de certo modo deficiente ou inadequada, devemos replicar que possivelmente nenhuma teoria pode fazer justiça a todos os temas e ensinamentos da tradição cristã. Se isso soa como algo aquém de uma defesa enfática dos direitos, então, é preciso considerar se qualquer teoria moral, seja a da ordem divina ou a do dever humano, pode reivindicar ser a única possível, de uma perspectiva teológica. O que estamos a caracterizar na teoria moral cristã é nada menos do que a vontade de Deus. A vontade divina é indubitavelmente complexa, até mesmo sutil e possivelmente em desenvolvimento. Quando optamos pela linguagem dos direitos divinos, o fazemos com a reserva e cautela devidas, não porque essa teoria seja necessariamente mais difícil do que outra, mas porque toda teoria moral é teologicamente problemática. Quando seguimos de uma identificação direta da vontade de Deus com seu imperativo particular numa dada situação, para o trabalho de caracterização, isto é, para caracterizar e sistematizar a vontade de Deus em termos gerais, então somos confrontados com a ameaça contínua de uma simplificação exagerada. É claro que a vontade de Deus pode ser simples, mas ela também pode ser notavelmente misteriosa. Mesmo Karl Barth, um forte defensor dos mandamentos divinos, concede que não é uma tarefa fácil para a ética cristã dizer-nos qual é a vontade de Deus. Por nosso intelecto e linguagem, estamos sempre, através da caracterização, aproximando a vontade divina de sua criação. Embora os direitos divinos possam ser o melhor meio para caracterizar o imperativo divino, disso não se conclui que devemos afirmar que tal teoria seja de qualquer modo adequada ou que [in God’s good time] certa forma nova de caracterização teo-moral não a possa aprimorar. Sem dúvida, nossa própria reflexão moral, seja lá quão inspirada for, é, do mesmo modo que o resto da vida criada o é, carente de redenção.

A segunda crítica é que a linguagem dos direitos não pode reivindicar ser abrangente. Isso quer dizer que não pode excluir outras formas de linguagem e conhecimento moral. Falar de generosidade, respeito, dever, sacrifício e compaixão é tão essencial quanto falar de direitos. Pode ser que os animalistas legalistas tenham enfatizado tanto a importância do conceito de direitos que acabaram por negligenciar a fala sobre a compaixão e o respeito. Pode ser, mas, para os cristãos, espero que possamos considerar garantida essa linguagem… Uma função da linguagem dos direitos é fornecer parâmetros e critérios na caminhada para viver de um modo menos explorador com outras criaturas. Essa é certamente uma função valiosa, mas por si mesma não garante uma interpretação positiva total e suficiente do imperativo divino. Em outras palavras, a ética cristã não se destina simplesmente a evitar o pior, mas a promover o bem. Para a elaboração, definição e busca do bem com os animais, precisamos de mais termos do que os pode fornecer a linguagem dos direitos. Pode ocorrer em certas situações que devamos conceder aos animais mais do que a teoria dos direitos lhes concede estritamente, e erremos, por generosidade. Pois, generosidade é certamente uma noção importante e a linguagem dos direitos deve estar atenta para não limitá-la, mesmo se não pudermos nos convencer de que ela tem o estatuto do “dever”. Para aqueles que pensam simplesmente que não deveríamos respeitar os direitos de, digamos, pardais, mas de fato buscam relações de amor e cuidado para com eles, a concepção dos direitos não lhes oferece obstáculo. Para aqueles que se sentem chamados a atos heróicos especiais de auto-sacrifício em favor de certas espécies animais, a concepção de direitos, outra vez, não oferece qualquer objeção. Sempre haverá pessoas inspiradas na vida de Jesus e dos muitos santos, que se sentem motivadas para atos heróicos e sacrificados. Mas, é claro, normalmente não é a essas pessoas que a linguagem dos direitos é dirigida. Resumindo: ao lutar pelo bem positivo de animais e humanos, os cristãos terão necessidade de usar um vocabulário diversificado. Tudo o que se exige aqui é que a linguagem dos direitos deve fazer parte da armadura.

Terceira, é preciso reiterar que os direitos dos quais falamos são só e propriamente os direitos de Deus. Somente sua vontade quer a dádiva da vida que os torna possíveis; somente ele encarrega o homem da proteção deles; e somente ele, ao fim das contas, pode garanti-los propriamente. Uma conclusão pode ser tirada disso: do mesmo modo em que nosso conhecimento de Deus avança com o poder do espírito, também pode avançar nosso conhecimento de sua vontade e, portanto, nosso entendimento de seus direitos. Alguns teólogos consideram a terminologia dos direitos um modo extremamente estático de descrever a relação de Deus com aquilo que, na verdade, é uma criação dinâmica e aberta. Mas os direitos divinos não são necessariamente tão estáticos quanto o são sua contrapartida secular. A possibilidade de mudança é inerente pelo fato de que nossa compreensão de Deus se desenvolve, seja para melhor ou para pior. Pode ser que o espírito divino nos mova para uma nova compreensão de nosso lugar no universo de tal modo que torne as controvérsias anteriores sobre a salvação individual do tempo da Reforma parecerem triviais, quando comparadas. Pode ser e pode não ser. Em qualquer dos casos, é nossa responsabilidade reconhecer os direitos de Deus na criação e defendê-los…

A questão pode não ser colocada de forma irrazoável: Qual é, então, a vantagem abrangente da teoria dos direitos, que a justifica, apesar dessas críticas? A resposta pode ser óbvia. A linguagem dos direitos insiste em que concebamos as exigências dos animais em termos análogos aos de outros seres, os humanos. Esse é o porquê de [alguns, talvez muitos] hesitarem ou rejeitarem os direitos animais: eles negam que as exigências de seres dotados de outros tipos de alma possam ser em qualquer sentido semelhantes às humanas. Na questão dos direitos animais, talvez mais do que em outras, os cristãos se confrontam com a limitação de sua própria história escolástica. A escolástica considerou por séculos os animais como “coisas”. O resultado não surpreende: os animais foram tratados como coisas. Em toda sofisticação intelectual dos argumentos contrários aos direitos animais, uma consideração claramente prática predomina. Aceitar que os animais têm direitos implica em ter de aceitar que eles deveriam ser tratados de modo diferente do modo como a maioria deles é tratada até hoje. Reconhecer explicitamente que os animais têm direitos implica em aceitar que eles têm uma estatura moral fundamental. Caso eles não tenham tal estatura, eles não podem pôr exigências; e se eles não têm exigências, eles não podem ter direitos. Talvez à luz de sua tradição seja fácil para os cristãos ver a significância histórica do debate sobre direitos mais do que o é aos seus contemporâneos leigos. Aqueles que negam direitos aos não-humanos argumentam com a história do que significa o não-direito para os animais; se o argumento oposto não os convence, isso se deve invariavelmente ao fato de que eles não querem aceitar que a maioria dos animais é tratada injustamente.

Isso é o que os irrita. Garantir direitos aos animais é aceitar que podem estar errados. De acordo com os direitos divinos, o que fazemos aos animais não é uma questão de gosto, conveniência ou filantropia. Quando falamos de direitos animais concebemos o que objetivamente devemos aos animais por uma questão de justiça, em função dos direitos que lhes foram concedidos por seu Criador. Animais podem ser prejudicados, porque seu Criador pode ser prejudicado em sua obra. Alguns filósofos ainda insistem em afirmar que é possível oferecer uma concepção teórica para melhorar o tratamento dos animais sem recorrer à noção de direitos. Pode ser possível oferecer algo melhor por essa via, mas muito permanece historicamente em aberto. Talvez possa ser possível através de um cálculo utilitarista evitar alguns dos males possíveis que ocorrem aos animais, mas com isso seu estatuto será alterado fundamentalmente? A linguagem e a história são contrárias àqueles que querem um melhor tratamento para os animais e também querem negar a legitimidade da linguagem dos direitos. Pois, de que modo podemos reverter séculos de tradição escolástica, se ainda aceitamos a pedra fundamental dessa tradição, qual seja, que todos, exceto os humanos, são destituídos de direitos? Se o que foi dito parece invocar a necessidade dubiosa de penitência na formulação da teoria ética, só se pode replicar que arrependimento é um dever cardinal para os cristãos. Se o cálculo das conseqüências permite dizer algo nas afirmações morais, então devemos aceitar que os cristãos têm boas razões para olhar o que sua própria teologia criou, e, à luz disso, teologizar tudo de novo, a partir do zero.

Mas, independentemente dessa necessidade prática de reverter séculos de descaso, os direitos divinos fazem sentido para um amplo espectro de conhecimentos teológicos – três em especial. O primeiro, o da absoluta dádiva da realidade criada. A menos que Deus seja indiferente para com a criação, aqueles seres cuja vida é inspirada por seu espírito têm valor especial e portanto requerem proteção especial. O segundo, a necessidade de testemunhar o poder eleitor de Deus em sua relação contratual. Homens e animais formam uma comunidade moral, não apenas por causa de sua origem comum, mas porque Deus os elegeu para uma relação especial com ele. A escolástica católica negou a possibilidade de uma comunidade moral com os brutos. “Nada irracional pode ser objeto da virtude cristã do amor ao próximo, da caridade”, escreve Bernard Häring. “Nada irracional”, ele nos diz, “é capaz de uma relação embelezadora com Deus.” O que a escolástica aqui nega e disputa, os direitos divinos assumem. Por serem homens e animais eleitos por Deus, formamos perante ele uma comunidade contratual de seres dotados de espírito. Terceiro, a perspectiva dos direitos divinos dá sentido à longa tradição que busca identificar o poder divino do homem na criação. De acordo com os direitos divinos, os humanos devem exercer o poder, mas apenas para a finalidade divina. A única significância do homem, nesse sentido, consiste em sua capacidade para perceber a vontade de Deus e para realizá-la em sua própria vida. O homem deve “comprometer-se com a tarefa divina”, afirma Edward Carpenter, de “elevar a criação, redimir a ordem da qual faz parte, e dirigi-la para seu fim.”

Aqueles que negam direitos divinos para os animais precisam mostrar de que modo podem concretizar efetivamente esses ensinamentos sem tomar parte no descaso dos não-humanos que ainda caracteriza elementos permanentes no âmbito da tradição cristã.

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Por Seculos os Animais como Coisas - Cachorros.


Por Seculos os Animais como Coisas - Cachorros:  Para a teologia católica, fundada como ela é na escolástica, os animais não têm estatura moral. Se temos alguns deveres em relação a eles, são deveres indiretos, devido a certos interesses humanos envolvidos. Animais não são racionais como os seres humanos, e, portanto, não podem ter almas imortais. Mesmo a escolástica mais fervorosa admite hoje, provavelmente, que os animais sentem alguma dor, mas, se a sentem, sua dor não é vista como moralmente relevante ou verdadeiramente análoga à dor humana. Consequentemente, animais não têm direitos. “Zoófilos freqüentemente perdem de vista a finalidade para a qual os animais, criaturas irracionais, foram criados por Deus, isto é, para servir e serem usados pelo homem”, afirma o Dicionário de Teologia Moral. “De fato, a doutrina moral católica ensina que os animais não têm direitos, da parte do homem.”

É nesse contexto que devemos compreender a presente discussão, ao mesmo tempo filosófica e teológica, sobre direitos animais. É a persistência do catolicismo escolástico que inevitavelmente faz dos direitos a questão que ela é. Quando se considera a riqueza do aprendizado e das prescrições em relação aos animais no âmbito da tradição cristã, é certamente desconcertante que essas influências negativas continuem a ser sustentadas e continuem a manter-se em destaque. A questão dos direitos animais não é uma concessão ao pensamento secular no âmbito dos círculos teológicos, mas simplesmente o último estágio de um debate que iniciou há uma centena de anos. John Foster, escrevendo em 1856 (contra a oposição de William Wyndham ao estabelecimento da primeira legislação do bem-estar animal), queixa-se de termos sido ensinados, “desde nossa mais tenra infância, que as sensações prazerosas e dolorosas dos animais não são dignas de atenção; que não tem a menor importância estarem sofrendo, desde que não se tornem menos prestativos por causa de seu sofrimento… que, em resumo, eles não têm direitos enquanto seres sencientes que existem para seu próprio bem, tanto quanto para o nosso.” Se hoje as pessoas preferem o termo “direitos animais” em vez de “amor pelos animais” ou “bem-estar animal”, elas estão, consciente ou inconscientemente, vinculando-se a um debate histórico que de modo algum está encerrado. Não é irrelevante o fato de que a “Sociedade Católica do Bem-estar Animal” nos Estados Unidos tornou-se agora a “Sociedade Internacional pelos Direitos Animais.”…

O argumento de que os cristãos devem continuar a empregar a linguagem dos direitos e estender seu uso aos animais precisa ser submetido a três críticas. A primeira é que os cristãos não devem exigir que a teoria dos direitos seja a única teoria da obrigação moral. À objeção de que a teoria dos direitos pode ser de certo modo deficiente ou inadequada, devemos replicar que possivelmente nenhuma teoria pode fazer justiça a todos os temas e ensinamentos da tradição cristã. Se isso soa como algo aquém de uma defesa enfática dos direitos, então, é preciso considerar se qualquer teoria moral, seja a da ordem divina ou a do dever humano, pode reivindicar ser a única possível, de uma perspectiva teológica. O que estamos a caracterizar na teoria moral cristã é nada menos do que a vontade de Deus. A vontade divina é indubitavelmente complexa, até mesmo sutil e possivelmente em desenvolvimento. Quando optamos pela linguagem dos direitos divinos, o fazemos com a reserva e cautela devidas, não porque essa teoria seja necessariamente mais difícil do que outra, mas porque toda teoria moral é teologicamente problemática. Quando seguimos de uma identificação direta da vontade de Deus com seu imperativo particular numa dada situação, para o trabalho de caracterização, isto é, para caracterizar e sistematizar a vontade de Deus em termos gerais, então somos confrontados com a ameaça contínua de uma simplificação exagerada. É claro que a vontade de Deus pode ser simples, mas ela também pode ser notavelmente misteriosa. Mesmo Karl Barth, um forte defensor dos mandamentos divinos, concede que não é uma tarefa fácil para a ética cristã dizer-nos qual é a vontade de Deus. Por nosso intelecto e linguagem, estamos sempre, através da caracterização, aproximando a vontade divina de sua criação. Embora os direitos divinos possam ser o melhor meio para caracterizar o imperativo divino, disso não se conclui que devemos afirmar que tal teoria seja de qualquer modo adequada ou que [in God’s good time] certa forma nova de caracterização teo-moral não a possa aprimorar. Sem dúvida, nossa própria reflexão moral, seja lá quão inspirada for, é, do mesmo modo que o resto da vida criada o é, carente de redenção.

A segunda crítica é que a linguagem dos direitos não pode reivindicar ser abrangente. Isso quer dizer que não pode excluir outras formas de linguagem e conhecimento moral. Falar de generosidade, respeito, dever, sacrifício e compaixão é tão essencial quanto falar de direitos. Pode ser que os animalistas legalistas tenham enfatizado tanto a importância do conceito de direitos que acabaram por negligenciar a fala sobre a compaixão e o respeito. Pode ser, mas, para os cristãos, espero que possamos considerar garantida essa linguagem… Uma função da linguagem dos direitos é fornecer parâmetros e critérios na caminhada para viver de um modo menos explorador com outras criaturas. Essa é certamente uma função valiosa, mas por si mesma não garante uma interpretação positiva total e suficiente do imperativo divino. Em outras palavras, a ética cristã não se destina simplesmente a evitar o pior, mas a promover o bem. Para a elaboração, definição e busca do bem com os animais, precisamos de mais termos do que os pode fornecer a linguagem dos direitos. Pode ocorrer em certas situações que devamos conceder aos animais mais do que a teoria dos direitos lhes concede estritamente, e erremos, por generosidade. Pois, generosidade é certamente uma noção importante e a linguagem dos direitos deve estar atenta para não limitá-la, mesmo se não pudermos nos convencer de que ela tem o estatuto do “dever”. Para aqueles que pensam simplesmente que não deveríamos respeitar os direitos de, digamos, pardais, mas de fato buscam relações de amor e cuidado para com eles, a concepção dos direitos não lhes oferece obstáculo. Para aqueles que se sentem chamados a atos heróicos especiais de auto-sacrifício em favor de certas espécies animais, a concepção de direitos, outra vez, não oferece qualquer objeção. Sempre haverá pessoas inspiradas na vida de Jesus e dos muitos santos, que se sentem motivadas para atos heróicos e sacrificados. Mas, é claro, normalmente não é a essas pessoas que a linguagem dos direitos é dirigida. Resumindo: ao lutar pelo bem positivo de animais e humanos, os cristãos terão necessidade de usar um vocabulário diversificado. Tudo o que se exige aqui é que a linguagem dos direitos deve fazer parte da armadura.

Terceira, é preciso reiterar que os direitos dos quais falamos são só e propriamente os direitos de Deus. Somente sua vontade quer a dádiva da vida que os torna possíveis; somente ele encarrega o homem da proteção deles; e somente ele, ao fim das contas, pode garanti-los propriamente. Uma conclusão pode ser tirada disso: do mesmo modo em que nosso conhecimento de Deus avança com o poder do espírito, também pode avançar nosso conhecimento de sua vontade e, portanto, nosso entendimento de seus direitos. Alguns teólogos consideram a terminologia dos direitos um modo extremamente estático de descrever a relação de Deus com aquilo que, na verdade, é uma criação dinâmica e aberta. Mas os direitos divinos não são necessariamente tão estáticos quanto o são sua contrapartida secular. A possibilidade de mudança é inerente pelo fato de que nossa compreensão de Deus se desenvolve, seja para melhor ou para pior. Pode ser que o espírito divino nos mova para uma nova compreensão de nosso lugar no universo de tal modo que torne as controvérsias anteriores sobre a salvação individual do tempo da Reforma parecerem triviais, quando comparadas. Pode ser e pode não ser. Em qualquer dos casos, é nossa responsabilidade reconhecer os direitos de Deus na criação e defendê-los…

A questão pode não ser colocada de forma irrazoável: Qual é, então, a vantagem abrangente da teoria dos direitos, que a justifica, apesar dessas críticas? A resposta pode ser óbvia. A linguagem dos direitos insiste em que concebamos as exigências dos animais em termos análogos aos de outros seres, os humanos. Esse é o porquê de [alguns, talvez muitos] hesitarem ou rejeitarem os direitos animais: eles negam que as exigências de seres dotados de outros tipos de alma possam ser em qualquer sentido semelhantes às humanas. Na questão dos direitos animais, talvez mais do que em outras, os cristãos se confrontam com a limitação de sua própria história escolástica. A escolástica considerou por séculos os animais como “coisas”. O resultado não surpreende: os animais foram tratados como coisas. Em toda sofisticação intelectual dos argumentos contrários aos direitos animais, uma consideração claramente prática predomina. Aceitar que os animais têm direitos implica em ter de aceitar que eles deveriam ser tratados de modo diferente do modo como a maioria deles é tratada até hoje. Reconhecer explicitamente que os animais têm direitos implica em aceitar que eles têm uma estatura moral fundamental. Caso eles não tenham tal estatura, eles não podem pôr exigências; e se eles não têm exigências, eles não podem ter direitos. Talvez à luz de sua tradição seja fácil para os cristãos ver a significância histórica do debate sobre direitos mais do que o é aos seus contemporâneos leigos. Aqueles que negam direitos aos não-humanos argumentam com a história do que significa o não-direito para os animais; se o argumento oposto não os convence, isso se deve invariavelmente ao fato de que eles não querem aceitar que a maioria dos animais é tratada injustamente.

Isso é o que os irrita. Garantir direitos aos animais é aceitar que podem estar errados. De acordo com os direitos divinos, o que fazemos aos animais não é uma questão de gosto, conveniência ou filantropia. Quando falamos de direitos animais concebemos o que objetivamente devemos aos animais por uma questão de justiça, em função dos direitos que lhes foram concedidos por seu Criador. Animais podem ser prejudicados, porque seu Criador pode ser prejudicado em sua obra. Alguns filósofos ainda insistem em afirmar que é possível oferecer uma concepção teórica para melhorar o tratamento dos animais sem recorrer à noção de direitos. Pode ser possível oferecer algo melhor por essa via, mas muito permanece historicamente em aberto. Talvez possa ser possível através de um cálculo utilitarista evitar alguns dos males possíveis que ocorrem aos animais, mas com isso seu estatuto será alterado fundamentalmente? A linguagem e a história são contrárias àqueles que querem um melhor tratamento para os animais e também querem negar a legitimidade da linguagem dos direitos. Pois, de que modo podemos reverter séculos de tradição escolástica, se ainda aceitamos a pedra fundamental dessa tradição, qual seja, que todos, exceto os humanos, são destituídos de direitos? Se o que foi dito parece invocar a necessidade dubiosa de penitência na formulação da teoria ética, só se pode replicar que arrependimento é um dever cardinal para os cristãos. Se o cálculo das conseqüências permite dizer algo nas afirmações morais, então devemos aceitar que os cristãos têm boas razões para olhar o que sua própria teologia criou, e, à luz disso, teologizar tudo de novo, a partir do zero.

Mas, independentemente dessa necessidade prática de reverter séculos de descaso, os direitos divinos fazem sentido para um amplo espectro de conhecimentos teológicos – três em especial. O primeiro, o da absoluta dádiva da realidade criada. A menos que Deus seja indiferente para com a criação, aqueles seres cuja vida é inspirada por seu espírito têm valor especial e portanto requerem proteção especial. O segundo, a necessidade de testemunhar o poder eleitor de Deus em sua relação contratual. Homens e animais formam uma comunidade moral, não apenas por causa de sua origem comum, mas porque Deus os elegeu para uma relação especial com ele. A escolástica católica negou a possibilidade de uma comunidade moral com os brutos. “Nada irracional pode ser objeto da virtude cristã do amor ao próximo, da caridade”, escreve Bernard Häring. “Nada irracional”, ele nos diz, “é capaz de uma relação embelezadora com Deus.” O que a escolástica aqui nega e disputa, os direitos divinos assumem. Por serem homens e animais eleitos por Deus, formamos perante ele uma comunidade contratual de seres dotados de espírito. Terceiro, a perspectiva dos direitos divinos dá sentido à longa tradição que busca identificar o poder divino do homem na criação. De acordo com os direitos divinos, os humanos devem exercer o poder, mas apenas para a finalidade divina. A única significância do homem, nesse sentido, consiste em sua capacidade para perceber a vontade de Deus e para realizá-la em sua própria vida. O homem deve “comprometer-se com a tarefa divina”, afirma Edward Carpenter, de “elevar a criação, redimir a ordem da qual faz parte, e dirigi-la para seu fim.”

Aqueles que negam direitos divinos para os animais precisam mostrar de que modo podem concretizar efetivamente esses ensinamentos sem tomar parte no descaso dos não-humanos que ainda caracteriza elementos permanentes no âmbito da tradição cristã.

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A Compaixão e o Respeito - Cachorros.


A Compaixão e o Respeito - Cachorros:  Para a teologia católica, fundada como ela é na escolástica, os animais não têm estatura moral. Se temos alguns deveres em relação a eles, são deveres indiretos, devido a certos interesses humanos envolvidos. Animais não são racionais como os seres humanos, e, portanto, não podem ter almas imortais. Mesmo a escolástica mais fervorosa admite hoje, provavelmente, que os animais sentem alguma dor, mas, se a sentem, sua dor não é vista como moralmente relevante ou verdadeiramente análoga à dor humana. Consequentemente, animais não têm direitos. “Zoófilos freqüentemente perdem de vista a finalidade para a qual os animais, criaturas irracionais, foram criados por Deus, isto é, para servir e serem usados pelo homem”, afirma o Dicionário de Teologia Moral. “De fato, a doutrina moral católica ensina que os animais não têm direitos, da parte do homem.”

É nesse contexto que devemos compreender a presente discussão, ao mesmo tempo filosófica e teológica, sobre direitos animais. É a persistência do catolicismo escolástico que inevitavelmente faz dos direitos a questão que ela é. Quando se considera a riqueza do aprendizado e das prescrições em relação aos animais no âmbito da tradição cristã, é certamente desconcertante que essas influências negativas continuem a ser sustentadas e continuem a manter-se em destaque. A questão dos direitos animais não é uma concessão ao pensamento secular no âmbito dos círculos teológicos, mas simplesmente o último estágio de um debate que iniciou há uma centena de anos. John Foster, escrevendo em 1856 (contra a oposição de William Wyndham ao estabelecimento da primeira legislação do bem-estar animal), queixa-se de termos sido ensinados, “desde nossa mais tenra infância, que as sensações prazerosas e dolorosas dos animais não são dignas de atenção; que não tem a menor importância estarem sofrendo, desde que não se tornem menos prestativos por causa de seu sofrimento… que, em resumo, eles não têm direitos enquanto seres sencientes que existem para seu próprio bem, tanto quanto para o nosso.” Se hoje as pessoas preferem o termo “direitos animais” em vez de “amor pelos animais” ou “bem-estar animal”, elas estão, consciente ou inconscientemente, vinculando-se a um debate histórico que de modo algum está encerrado. Não é irrelevante o fato de que a “Sociedade Católica do Bem-estar Animal” nos Estados Unidos tornou-se agora a “Sociedade Internacional pelos Direitos Animais.”…

O argumento de que os cristãos devem continuar a empregar a linguagem dos direitos e estender seu uso aos animais precisa ser submetido a três críticas. A primeira é que os cristãos não devem exigir que a teoria dos direitos seja a única teoria da obrigação moral. À objeção de que a teoria dos direitos pode ser de certo modo deficiente ou inadequada, devemos replicar que possivelmente nenhuma teoria pode fazer justiça a todos os temas e ensinamentos da tradição cristã. Se isso soa como algo aquém de uma defesa enfática dos direitos, então, é preciso considerar se qualquer teoria moral, seja a da ordem divina ou a do dever humano, pode reivindicar ser a única possível, de uma perspectiva teológica. O que estamos a caracterizar na teoria moral cristã é nada menos do que a vontade de Deus. A vontade divina é indubitavelmente complexa, até mesmo sutil e possivelmente em desenvolvimento. Quando optamos pela linguagem dos direitos divinos, o fazemos com a reserva e cautela devidas, não porque essa teoria seja necessariamente mais difícil do que outra, mas porque toda teoria moral é teologicamente problemática. Quando seguimos de uma identificação direta da vontade de Deus com seu imperativo particular numa dada situação, para o trabalho de caracterização, isto é, para caracterizar e sistematizar a vontade de Deus em termos gerais, então somos confrontados com a ameaça contínua de uma simplificação exagerada. É claro que a vontade de Deus pode ser simples, mas ela também pode ser notavelmente misteriosa. Mesmo Karl Barth, um forte defensor dos mandamentos divinos, concede que não é uma tarefa fácil para a ética cristã dizer-nos qual é a vontade de Deus. Por nosso intelecto e linguagem, estamos sempre, através da caracterização, aproximando a vontade divina de sua criação. Embora os direitos divinos possam ser o melhor meio para caracterizar o imperativo divino, disso não se conclui que devemos afirmar que tal teoria seja de qualquer modo adequada ou que [in God’s good time] certa forma nova de caracterização teo-moral não a possa aprimorar. Sem dúvida, nossa própria reflexão moral, seja lá quão inspirada for, é, do mesmo modo que o resto da vida criada o é, carente de redenção.

A segunda crítica é que a linguagem dos direitos não pode reivindicar ser abrangente. Isso quer dizer que não pode excluir outras formas de linguagem e conhecimento moral. Falar de generosidade, respeito, dever, sacrifício e compaixão é tão essencial quanto falar de direitos. Pode ser que os animalistas legalistas tenham enfatizado tanto a importância do conceito de direitos que acabaram por negligenciar a fala sobre a compaixão e o respeito. Pode ser, mas, para os cristãos, espero que possamos considerar garantida essa linguagem… Uma função da linguagem dos direitos é fornecer parâmetros e critérios na caminhada para viver de um modo menos explorador com outras criaturas. Essa é certamente uma função valiosa, mas por si mesma não garante uma interpretação positiva total e suficiente do imperativo divino. Em outras palavras, a ética cristã não se destina simplesmente a evitar o pior, mas a promover o bem. Para a elaboração, definição e busca do bem com os animais, precisamos de mais termos do que os pode fornecer a linguagem dos direitos. Pode ocorrer em certas situações que devamos conceder aos animais mais do que a teoria dos direitos lhes concede estritamente, e erremos, por generosidade. Pois, generosidade é certamente uma noção importante e a linguagem dos direitos deve estar atenta para não limitá-la, mesmo se não pudermos nos convencer de que ela tem o estatuto do “dever”. Para aqueles que pensam simplesmente que não deveríamos respeitar os direitos de, digamos, pardais, mas de fato buscam relações de amor e cuidado para com eles, a concepção dos direitos não lhes oferece obstáculo. Para aqueles que se sentem chamados a atos heróicos especiais de auto-sacrifício em favor de certas espécies animais, a concepção de direitos, outra vez, não oferece qualquer objeção. Sempre haverá pessoas inspiradas na vida de Jesus e dos muitos santos, que se sentem motivadas para atos heróicos e sacrificados. Mas, é claro, normalmente não é a essas pessoas que a linguagem dos direitos é dirigida. Resumindo: ao lutar pelo bem positivo de animais e humanos, os cristãos terão necessidade de usar um vocabulário diversificado. Tudo o que se exige aqui é que a linguagem dos direitos deve fazer parte da armadura.

Terceira, é preciso reiterar que os direitos dos quais falamos são só e propriamente os direitos de Deus. Somente sua vontade quer a dádiva da vida que os torna possíveis; somente ele encarrega o homem da proteção deles; e somente ele, ao fim das contas, pode garanti-los propriamente. Uma conclusão pode ser tirada disso: do mesmo modo em que nosso conhecimento de Deus avança com o poder do espírito, também pode avançar nosso conhecimento de sua vontade e, portanto, nosso entendimento de seus direitos. Alguns teólogos consideram a terminologia dos direitos um modo extremamente estático de descrever a relação de Deus com aquilo que, na verdade, é uma criação dinâmica e aberta. Mas os direitos divinos não são necessariamente tão estáticos quanto o são sua contrapartida secular. A possibilidade de mudança é inerente pelo fato de que nossa compreensão de Deus se desenvolve, seja para melhor ou para pior. Pode ser que o espírito divino nos mova para uma nova compreensão de nosso lugar no universo de tal modo que torne as controvérsias anteriores sobre a salvação individual do tempo da Reforma parecerem triviais, quando comparadas. Pode ser e pode não ser. Em qualquer dos casos, é nossa responsabilidade reconhecer os direitos de Deus na criação e defendê-los…

A questão pode não ser colocada de forma irrazoável: Qual é, então, a vantagem abrangente da teoria dos direitos, que a justifica, apesar dessas críticas? A resposta pode ser óbvia. A linguagem dos direitos insiste em que concebamos as exigências dos animais em termos análogos aos de outros seres, os humanos. Esse é o porquê de [alguns, talvez muitos] hesitarem ou rejeitarem os direitos animais: eles negam que as exigências de seres dotados de outros tipos de alma possam ser em qualquer sentido semelhantes às humanas. Na questão dos direitos animais, talvez mais do que em outras, os cristãos se confrontam com a limitação de sua própria história escolástica. A escolástica considerou por séculos os animais como “coisas”. O resultado não surpreende: os animais foram tratados como coisas. Em toda sofisticação intelectual dos argumentos contrários aos direitos animais, uma consideração claramente prática predomina. Aceitar que os animais têm direitos implica em ter de aceitar que eles deveriam ser tratados de modo diferente do modo como a maioria deles é tratada até hoje. Reconhecer explicitamente que os animais têm direitos implica em aceitar que eles têm uma estatura moral fundamental. Caso eles não tenham tal estatura, eles não podem pôr exigências; e se eles não têm exigências, eles não podem ter direitos. Talvez à luz de sua tradição seja fácil para os cristãos ver a significância histórica do debate sobre direitos mais do que o é aos seus contemporâneos leigos. Aqueles que negam direitos aos não-humanos argumentam com a história do que significa o não-direito para os animais; se o argumento oposto não os convence, isso se deve invariavelmente ao fato de que eles não querem aceitar que a maioria dos animais é tratada injustamente.

Isso é o que os irrita. Garantir direitos aos animais é aceitar que podem estar errados. De acordo com os direitos divinos, o que fazemos aos animais não é uma questão de gosto, conveniência ou filantropia. Quando falamos de direitos animais concebemos o que objetivamente devemos aos animais por uma questão de justiça, em função dos direitos que lhes foram concedidos por seu Criador. Animais podem ser prejudicados, porque seu Criador pode ser prejudicado em sua obra. Alguns filósofos ainda insistem em afirmar que é possível oferecer uma concepção teórica para melhorar o tratamento dos animais sem recorrer à noção de direitos. Pode ser possível oferecer algo melhor por essa via, mas muito permanece historicamente em aberto. Talvez possa ser possível através de um cálculo utilitarista evitar alguns dos males possíveis que ocorrem aos animais, mas com isso seu estatuto será alterado fundamentalmente? A linguagem e a história são contrárias àqueles que querem um melhor tratamento para os animais e também querem negar a legitimidade da linguagem dos direitos. Pois, de que modo podemos reverter séculos de tradição escolástica, se ainda aceitamos a pedra fundamental dessa tradição, qual seja, que todos, exceto os humanos, são destituídos de direitos? Se o que foi dito parece invocar a necessidade dubiosa de penitência na formulação da teoria ética, só se pode replicar que arrependimento é um dever cardinal para os cristãos. Se o cálculo das conseqüências permite dizer algo nas afirmações morais, então devemos aceitar que os cristãos têm boas razões para olhar o que sua própria teologia criou, e, à luz disso, teologizar tudo de novo, a partir do zero.

Mas, independentemente dessa necessidade prática de reverter séculos de descaso, os direitos divinos fazem sentido para um amplo espectro de conhecimentos teológicos – três em especial. O primeiro, o da absoluta dádiva da realidade criada. A menos que Deus seja indiferente para com a criação, aqueles seres cuja vida é inspirada por seu espírito têm valor especial e portanto requerem proteção especial. O segundo, a necessidade de testemunhar o poder eleitor de Deus em sua relação contratual. Homens e animais formam uma comunidade moral, não apenas por causa de sua origem comum, mas porque Deus os elegeu para uma relação especial com ele. A escolástica católica negou a possibilidade de uma comunidade moral com os brutos. “Nada irracional pode ser objeto da virtude cristã do amor ao próximo, da caridade”, escreve Bernard Häring. “Nada irracional”, ele nos diz, “é capaz de uma relação embelezadora com Deus.” O que a escolástica aqui nega e disputa, os direitos divinos assumem. Por serem homens e animais eleitos por Deus, formamos perante ele uma comunidade contratual de seres dotados de espírito. Terceiro, a perspectiva dos direitos divinos dá sentido à longa tradição que busca identificar o poder divino do homem na criação. De acordo com os direitos divinos, os humanos devem exercer o poder, mas apenas para a finalidade divina. A única significância do homem, nesse sentido, consiste em sua capacidade para perceber a vontade de Deus e para realizá-la em sua própria vida. O homem deve “comprometer-se com a tarefa divina”, afirma Edward Carpenter, de “elevar a criação, redimir a ordem da qual faz parte, e dirigi-la para seu fim.”

Aqueles que negam direitos divinos para os animais precisam mostrar de que modo podem concretizar efetivamente esses ensinamentos sem tomar parte no descaso dos não-humanos que ainda caracteriza elementos permanentes no âmbito da tradição cristã.

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Para Servir e Serem Usados pelo Homem - Cachorros.


Para Servir e Serem Usados pelo Homem - Cachorros:  Para a teologia católica, fundada como ela é na escolástica, os animais não têm estatura moral. Se temos alguns deveres em relação a eles, são deveres indiretos, devido a certos interesses humanos envolvidos. Animais não são racionais como os seres humanos, e, portanto, não podem ter almas imortais. Mesmo a escolástica mais fervorosa admite hoje, provavelmente, que os animais sentem alguma dor, mas, se a sentem, sua dor não é vista como moralmente relevante ou verdadeiramente análoga à dor humana. Consequentemente, animais não têm direitos. “Zoófilos freqüentemente perdem de vista a finalidade para a qual os animais, criaturas irracionais, foram criados por Deus, isto é, para servir e serem usados pelo homem”, afirma o Dicionário de Teologia Moral. “De fato, a doutrina moral católica ensina que os animais não têm direitos, da parte do homem.”

É nesse contexto que devemos compreender a presente discussão, ao mesmo tempo filosófica e teológica, sobre direitos animais. É a persistência do catolicismo escolástico que inevitavelmente faz dos direitos a questão que ela é. Quando se considera a riqueza do aprendizado e das prescrições em relação aos animais no âmbito da tradição cristã, é certamente desconcertante que essas influências negativas continuem a ser sustentadas e continuem a manter-se em destaque. A questão dos direitos animais não é uma concessão ao pensamento secular no âmbito dos círculos teológicos, mas simplesmente o último estágio de um debate que iniciou há uma centena de anos. John Foster, escrevendo em 1856 (contra a oposição de William Wyndham ao estabelecimento da primeira legislação do bem-estar animal), queixa-se de termos sido ensinados, “desde nossa mais tenra infância, que as sensações prazerosas e dolorosas dos animais não são dignas de atenção; que não tem a menor importância estarem sofrendo, desde que não se tornem menos prestativos por causa de seu sofrimento… que, em resumo, eles não têm direitos enquanto seres sencientes que existem para seu próprio bem, tanto quanto para o nosso.” Se hoje as pessoas preferem o termo “direitos animais” em vez de “amor pelos animais” ou “bem-estar animal”, elas estão, consciente ou inconscientemente, vinculando-se a um debate histórico que de modo algum está encerrado. Não é irrelevante o fato de que a “Sociedade Católica do Bem-estar Animal” nos Estados Unidos tornou-se agora a “Sociedade Internacional pelos Direitos Animais.”…

O argumento de que os cristãos devem continuar a empregar a linguagem dos direitos e estender seu uso aos animais precisa ser submetido a três críticas. A primeira é que os cristãos não devem exigir que a teoria dos direitos seja a única teoria da obrigação moral. À objeção de que a teoria dos direitos pode ser de certo modo deficiente ou inadequada, devemos replicar que possivelmente nenhuma teoria pode fazer justiça a todos os temas e ensinamentos da tradição cristã. Se isso soa como algo aquém de uma defesa enfática dos direitos, então, é preciso considerar se qualquer teoria moral, seja a da ordem divina ou a do dever humano, pode reivindicar ser a única possível, de uma perspectiva teológica. O que estamos a caracterizar na teoria moral cristã é nada menos do que a vontade de Deus. A vontade divina é indubitavelmente complexa, até mesmo sutil e possivelmente em desenvolvimento. Quando optamos pela linguagem dos direitos divinos, o fazemos com a reserva e cautela devidas, não porque essa teoria seja necessariamente mais difícil do que outra, mas porque toda teoria moral é teologicamente problemática. Quando seguimos de uma identificação direta da vontade de Deus com seu imperativo particular numa dada situação, para o trabalho de caracterização, isto é, para caracterizar e sistematizar a vontade de Deus em termos gerais, então somos confrontados com a ameaça contínua de uma simplificação exagerada. É claro que a vontade de Deus pode ser simples, mas ela também pode ser notavelmente misteriosa. Mesmo Karl Barth, um forte defensor dos mandamentos divinos, concede que não é uma tarefa fácil para a ética cristã dizer-nos qual é a vontade de Deus. Por nosso intelecto e linguagem, estamos sempre, através da caracterização, aproximando a vontade divina de sua criação. Embora os direitos divinos possam ser o melhor meio para caracterizar o imperativo divino, disso não se conclui que devemos afirmar que tal teoria seja de qualquer modo adequada ou que [in God’s good time] certa forma nova de caracterização teo-moral não a possa aprimorar. Sem dúvida, nossa própria reflexão moral, seja lá quão inspirada for, é, do mesmo modo que o resto da vida criada o é, carente de redenção.

A segunda crítica é que a linguagem dos direitos não pode reivindicar ser abrangente. Isso quer dizer que não pode excluir outras formas de linguagem e conhecimento moral. Falar de generosidade, respeito, dever, sacrifício e compaixão é tão essencial quanto falar de direitos. Pode ser que os animalistas legalistas tenham enfatizado tanto a importância do conceito de direitos que acabaram por negligenciar a fala sobre a compaixão e o respeito. Pode ser, mas, para os cristãos, espero que possamos considerar garantida essa linguagem… Uma função da linguagem dos direitos é fornecer parâmetros e critérios na caminhada para viver de um modo menos explorador com outras criaturas. Essa é certamente uma função valiosa, mas por si mesma não garante uma interpretação positiva total e suficiente do imperativo divino. Em outras palavras, a ética cristã não se destina simplesmente a evitar o pior, mas a promover o bem. Para a elaboração, definição e busca do bem com os animais, precisamos de mais termos do que os pode fornecer a linguagem dos direitos. Pode ocorrer em certas situações que devamos conceder aos animais mais do que a teoria dos direitos lhes concede estritamente, e erremos, por generosidade. Pois, generosidade é certamente uma noção importante e a linguagem dos direitos deve estar atenta para não limitá-la, mesmo se não pudermos nos convencer de que ela tem o estatuto do “dever”. Para aqueles que pensam simplesmente que não deveríamos respeitar os direitos de, digamos, pardais, mas de fato buscam relações de amor e cuidado para com eles, a concepção dos direitos não lhes oferece obstáculo. Para aqueles que se sentem chamados a atos heróicos especiais de auto-sacrifício em favor de certas espécies animais, a concepção de direitos, outra vez, não oferece qualquer objeção. Sempre haverá pessoas inspiradas na vida de Jesus e dos muitos santos, que se sentem motivadas para atos heróicos e sacrificados. Mas, é claro, normalmente não é a essas pessoas que a linguagem dos direitos é dirigida. Resumindo: ao lutar pelo bem positivo de animais e humanos, os cristãos terão necessidade de usar um vocabulário diversificado. Tudo o que se exige aqui é que a linguagem dos direitos deve fazer parte da armadura.

Terceira, é preciso reiterar que os direitos dos quais falamos são só e propriamente os direitos de Deus. Somente sua vontade quer a dádiva da vida que os torna possíveis; somente ele encarrega o homem da proteção deles; e somente ele, ao fim das contas, pode garanti-los propriamente. Uma conclusão pode ser tirada disso: do mesmo modo em que nosso conhecimento de Deus avança com o poder do espírito, também pode avançar nosso conhecimento de sua vontade e, portanto, nosso entendimento de seus direitos. Alguns teólogos consideram a terminologia dos direitos um modo extremamente estático de descrever a relação de Deus com aquilo que, na verdade, é uma criação dinâmica e aberta. Mas os direitos divinos não são necessariamente tão estáticos quanto o são sua contrapartida secular. A possibilidade de mudança é inerente pelo fato de que nossa compreensão de Deus se desenvolve, seja para melhor ou para pior. Pode ser que o espírito divino nos mova para uma nova compreensão de nosso lugar no universo de tal modo que torne as controvérsias anteriores sobre a salvação individual do tempo da Reforma parecerem triviais, quando comparadas. Pode ser e pode não ser. Em qualquer dos casos, é nossa responsabilidade reconhecer os direitos de Deus na criação e defendê-los…

A questão pode não ser colocada de forma irrazoável: Qual é, então, a vantagem abrangente da teoria dos direitos, que a justifica, apesar dessas críticas? A resposta pode ser óbvia. A linguagem dos direitos insiste em que concebamos as exigências dos animais em termos análogos aos de outros seres, os humanos. Esse é o porquê de [alguns, talvez muitos] hesitarem ou rejeitarem os direitos animais: eles negam que as exigências de seres dotados de outros tipos de alma possam ser em qualquer sentido semelhantes às humanas. Na questão dos direitos animais, talvez mais do que em outras, os cristãos se confrontam com a limitação de sua própria história escolástica. A escolástica considerou por séculos os animais como “coisas”. O resultado não surpreende: os animais foram tratados como coisas. Em toda sofisticação intelectual dos argumentos contrários aos direitos animais, uma consideração claramente prática predomina. Aceitar que os animais têm direitos implica em ter de aceitar que eles deveriam ser tratados de modo diferente do modo como a maioria deles é tratada até hoje. Reconhecer explicitamente que os animais têm direitos implica em aceitar que eles têm uma estatura moral fundamental. Caso eles não tenham tal estatura, eles não podem pôr exigências; e se eles não têm exigências, eles não podem ter direitos. Talvez à luz de sua tradição seja fácil para os cristãos ver a significância histórica do debate sobre direitos mais do que o é aos seus contemporâneos leigos. Aqueles que negam direitos aos não-humanos argumentam com a história do que significa o não-direito para os animais; se o argumento oposto não os convence, isso se deve invariavelmente ao fato de que eles não querem aceitar que a maioria dos animais é tratada injustamente.

Isso é o que os irrita. Garantir direitos aos animais é aceitar que podem estar errados. De acordo com os direitos divinos, o que fazemos aos animais não é uma questão de gosto, conveniência ou filantropia. Quando falamos de direitos animais concebemos o que objetivamente devemos aos animais por uma questão de justiça, em função dos direitos que lhes foram concedidos por seu Criador. Animais podem ser prejudicados, porque seu Criador pode ser prejudicado em sua obra. Alguns filósofos ainda insistem em afirmar que é possível oferecer uma concepção teórica para melhorar o tratamento dos animais sem recorrer à noção de direitos. Pode ser possível oferecer algo melhor por essa via, mas muito permanece historicamente em aberto. Talvez possa ser possível através de um cálculo utilitarista evitar alguns dos males possíveis que ocorrem aos animais, mas com isso seu estatuto será alterado fundamentalmente? A linguagem e a história são contrárias àqueles que querem um melhor tratamento para os animais e também querem negar a legitimidade da linguagem dos direitos. Pois, de que modo podemos reverter séculos de tradição escolástica, se ainda aceitamos a pedra fundamental dessa tradição, qual seja, que todos, exceto os humanos, são destituídos de direitos? Se o que foi dito parece invocar a necessidade dubiosa de penitência na formulação da teoria ética, só se pode replicar que arrependimento é um dever cardinal para os cristãos. Se o cálculo das conseqüências permite dizer algo nas afirmações morais, então devemos aceitar que os cristãos têm boas razões para olhar o que sua própria teologia criou, e, à luz disso, teologizar tudo de novo, a partir do zero.

Mas, independentemente dessa necessidade prática de reverter séculos de descaso, os direitos divinos fazem sentido para um amplo espectro de conhecimentos teológicos – três em especial. O primeiro, o da absoluta dádiva da realidade criada. A menos que Deus seja indiferente para com a criação, aqueles seres cuja vida é inspirada por seu espírito têm valor especial e portanto requerem proteção especial. O segundo, a necessidade de testemunhar o poder eleitor de Deus em sua relação contratual. Homens e animais formam uma comunidade moral, não apenas por causa de sua origem comum, mas porque Deus os elegeu para uma relação especial com ele. A escolástica católica negou a possibilidade de uma comunidade moral com os brutos. “Nada irracional pode ser objeto da virtude cristã do amor ao próximo, da caridade”, escreve Bernard Häring. “Nada irracional”, ele nos diz, “é capaz de uma relação embelezadora com Deus.” O que a escolástica aqui nega e disputa, os direitos divinos assumem. Por serem homens e animais eleitos por Deus, formamos perante ele uma comunidade contratual de seres dotados de espírito. Terceiro, a perspectiva dos direitos divinos dá sentido à longa tradição que busca identificar o poder divino do homem na criação. De acordo com os direitos divinos, os humanos devem exercer o poder, mas apenas para a finalidade divina. A única significância do homem, nesse sentido, consiste em sua capacidade para perceber a vontade de Deus e para realizá-la em sua própria vida. O homem deve “comprometer-se com a tarefa divina”, afirma Edward Carpenter, de “elevar a criação, redimir a ordem da qual faz parte, e dirigi-la para seu fim.”

Aqueles que negam direitos divinos para os animais precisam mostrar de que modo podem concretizar efetivamente esses ensinamentos sem tomar parte no descaso dos não-humanos que ainda caracteriza elementos permanentes no âmbito da tradição cristã.

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